por Luiz Rami­ro (22/12/2019) em revistaamalgama.com.br

Ives Gan­dra acre­di­ta que mais dia menos dia será pre­ci­so uma refor­ma polí­ti­ca para apro­xi­mar o Bra­sil do parlamentarismo.

Quem acom­pa­nha mini­ma­men­te o iti­ne­rá­rio da polí­ti­ca bra­si­lei­ra per­ce­be a neces­si­da­de de se orga­ni­zar uma ver­da­dei­ra ope­ra­ção “tapa-bura­cos” sobre os per­so­na­gens da nos­sa his­tó­ria, tan­to os vivos quan­to os já fale­ci­dos. Des­co­nhe­ce­mos ou conhe­ce­mos mal pes­so­as que estão na base daqui­lo que se apli­ca em polí­ti­cas públi­cas, ins­ti­tui­ções, ide­o­lo­gi­as, teses jurí­di­cas e mobi­li­za­ções soci­ais. No flan­co con­ser­va­dor a deser­ti­fi­ca­ção é devas­ta­do­ra, por con­ta dos anos de ostra­cis­mo des­se ideá­rio na are­na polí­ti­ca (até pelo menos a elei­ção de Jair Bol­so­na­ro em 2018), e, a fran­ca des­con­si­de­ra­ção den­tro das uni­ver­si­da­des e ins­ti­tu­tos de pes­qui­sa sobre o real sig­ni­fi­ca­do da nova direi­ta. Na medi­da em que uma anto­lo­gia dos ato­res e auto­res da polí­ti­ca atu­al for fei­ta, será pos­sí­vel iden­ti­fi­car dois gru­pos des­sa con­jun­tu­ra libe­ral-con­ser­va­do­ra. Pri­mei­ro, aque­les que sur­gi­ram repen­ti­na­men­te, do ano­ni­ma­to para os altos esca­lões do jor­na­lis­mo, dos car­gos públi­cos e da vida par­ti­dá­ria. Segun­do, aque­les que fazem par­te de outra gera­ção, que podem ser os res­pon­sá­veis por “pas­sar o bas­tão” das tra­di­ções ide­o­ló­gi­cas. Os pri­mei­ros fazem par­te da tur­ma de jovens na casa dos 20 e 30 anos, enquan­to estes são inte­lec­tu­ais públi­cos mai­o­res de 60 anos de ida­de. Pou­cos são os que figu­ram “no meio do caminho”.

Aos ana­lis­tas do con­ser­va­do­ris­mo bra­si­lei­ro, e aos pró­pri­os defen­so­res des­se ideá­rio polí­ti­co, o desa­fio é jus­ta­men­te pro­mo­ver a reu­nião de gera­ções. Nas mais diver­sas áre­as há figu­ras impor­tan­tes que, den­tro ou fora do atu­al gover­no, podem rea­li­zar esse papel de pon­te entre o que se fez, o que se defen­deu, e o que pode ser fei­to e pro­te­gi­do. Refi­ro-me a nomes ale­a­tó­ri­os como Ricar­do Vélez Rodri­guez, Anto­nio Paim, Mar­co Anto­nio Vil­la, Ives Gan­dra Mar­tins, entre outros[1]. Assim, uma hipó­te­se é per­ce­ber a pos­si­bi­li­da­de de encon­tro capaz de man­ter uma linha­gem con­ser­va­do­ra na polí­ti­ca brasileira.

Por outro lado, é pos­sí­vel ques­ti­o­nar esse vín­cu­lo entre o velho e o novo. É bem ver­da­de que uma liga­ção inter-gera­ci­o­nal pode sim­ples­men­te não exis­tir. A outra hipó­te­se é dese­nha­da da seguin­te manei­ra: esse diá­lo­go ain­da não se rea­li­zou, ou quan­do se fez foi desas­tro­so[2], sim­ples­men­te por­que não há “liga” entre jovens e velhos “con­ser­va­do­res”, pois não esta­ri­am na mes­ma “pis­ta de cor­ri­da” para que o bas­tão da defe­sa ide­o­ló­gi­ca fos­se repas­sa­do. A que­bra pode ser entre con­ser­va­do­res de outro­ra e rea­ci­o­ná­ri­os de últi­ma hora.

No guar­da-chu­va de ten­dên­ci­as polí­ti­cas dos apoi­a­do­res do gover­no Bol­so­na­ro, reu­nin­do uma gama de deman­das e íco­nes da nova direi­ta bra­si­lei­ra, não são pou­cos os que pas­sam ao lar­go de um con­ser­va­do­ris­mo bur­ki­a­no, trans­cen­den­do para um ver­da­dei­ro rea­ci­o­na­ris­mo. Des­cren­tes de toda a cons­tru­ção civi­li­za­ci­o­nal moder­na, os rea­ci­o­ná­ri­os não estão tão pre­o­cu­pa­dos em defen­der um patrimô­nio de cons­tru­ções ide­ais que no máxi­mo são pre­ser­va­ções de ela­bo­ra­ções revo­lu­ci­o­ná­ri­as – Esta­do, cien­ti­fi­ci­za­ção, urba­ni­za­ção, lai­ci­da­de, demo­cra­ti­za­ção, e outras taras da vida moder­na. Ain­da que pou­co cons­ci­en­tes ou coor­de­na­dos em seus obje­ti­vos, se viram den­tro de um gover­no à direi­ta como for­ma de rea­ção a esse rol de supos­tas con­quis­tas civi­li­za­ci­o­nais. Dian­te dis­so res­ta a sal­va­guar­da de outro con­jun­to de pau­tas que se con­cen­tram no Direi­to Natu­ral e na vida cris­tã cató­li­ca, como ânco­ra num mar revol­to em um gran­de naufrágio.

Não se tra­ta de uma visão idí­li­ca ou utó­pi­ca da polí­ti­ca, mas um rea­lis­mo que pro­je­ta algo dife­ren­te da índo­le bur­ki­a­na. O polí­ti­co irlan­dês Edmund Bur­ke (1729–1797) era um Whig (libe­ral), que se tor­nou para­dig­má­ti­co à pró­pria cons­ci­ên­cia con­ser­va­do­ra Tory por­que ela­bo­rou um famo­so pan­fle­to con­tra a Revo­lu­ção fran­ce­sa, ten­do em vis­ta pro­te­ger as liber­da­des con­quis­ta­das ante a ame­a­ça revo­lu­ci­o­ná­ria. Bur­ke é o mode­lo do con­ser­va­dor moder­no pelo fato de que­rer a moder­ni­za­ção, com avan­ço de novos direi­tos, de for­ma pru­den­ci­al atra­vés das bases ins­ti­tu­ci­o­nais ingle­sas. Con­tem­po­ra­ne­a­men­te, o bur­ki­a­no é aque­le que pre­co­ni­za uma defe­sa irres­tri­ta das ins­ti­tui­ções demo­crá­ti­cas do esta­do moder­no, per­fa­zen­do uma visão de pro­gres­so histórico.

No fun­do esse con­ser­va­do­ris­mo bur­ki­a­no resi­de no mes­mo para­dig­ma dos pro­gres­sis­tas. A cren­ça na dife­ren­ça entre eles aca­ba sen­do tão fan­ta­si­o­sa quan­to a de que a divi­são de pode­res é capaz de gerar neu­tra­li­da­de polí­ti­ca. Sobre esta ques­tão Karl Loewens­tein (1891–1973) dis­ser­tou sobre o cará­ter român­ti­co do pen­sa­men­to de Mon­tes­qui­eu, quan­do este se vis­lum­brou com a cons­ti­tui­ção ingle­sa e supôs que um poder polí­ti­co pode­ria ceder poder, levan­do ao equi­lí­brio de todo o sis­te­ma, quan­do em todo caso con­cre­to o que se cons­ta­ta é uma sor­te de com­pe­ti­ção, em que um domí­nio se sobre­põe ao outro[3]. E, no sis­te­ma par­ti­dá­rio, a melhor ilus­tra­ção vem de G. K. Ches­ter­ton, quan­do des­cre­veu que “o mun­do moder­no divi­diu-se em con­ser­va­do­res e pro­gres­sis­tas. O papel dos pro­gres­sis­tas é seguir come­ten­do erros. O papel dos con­ser­va­do­res é impe­dir que esses erros sejam cor­ri­gi­dos”[4].

Dife­ren­te­men­te, para a noção de tra­di­ção cató­li­ca, anti-moder­na, o pro­gres­so his­tó­ri­co ofe­re­ci­do pelas revo­lu­ções não tem sal­va­ção, é dano­so em sua ori­gem, e no limi­te pode ser supor­ta­do, mas não pro­te­gi­do. Em uma pala­vra, um cató­li­co tra­di­ci­o­nal, ou seja, alguém que pode mui­to bem estar nes­se flan­co rea­ci­o­ná­rio, reco­nhe­ce a sepa­ra­ção entre igre­ja e esta­do como um dado atu­al, mas jamais deve ter isso como uma ban­dei­ra a ser defen­di­da, como se um patrimô­nio con­quis­ta­do fosse.

Ives Gandra como teste dessas hipóteses

Quan­do escre­veu sobre a ideia das gera­ções, Orte­ga y Gas­set tra­tou das “épo­cas cumu­la­ti­vas”, em que se sen­te a homo­ge­nei­da­de entre o rece­bi­do e o pró­prio, e, “épo­cas eli­mi­na­tó­ri­as e polê­mi­cas”, onde há uma pro­fun­da hete­ro­ge­nei­da­de entre o antes e o depois[5]. Já sabe­mos que des­de 2015 o Bra­sil pas­sa por impor­tan­tes que­bras de ciclos polí­ti­cos, seja na dinâ­mi­ca dos par­ti­dos, seja na com­pre­en­são da Cons­ti­tui­ção de 1988. No entan­to, na aná­li­se das ide­o­lo­gi­as e posi­ções polí­ti­cas é pre­ci­so sope­sar o cará­ter da direi­ta con­ser­va­do­ra. Há um acú­mu­lo entre o con­ser­va­do­ris­mo de déca­das pas­sa­das e o que se ins­tau­rou no poder ago­ra? Ou, esta­mos num momen­to eli­mi­na­tó­rio, a pon­to de não encon­trar­mos pon­tos de fili­a­ção, con­ta­to e asso­ci­a­ção entre velhos e novos conservadores?

A fim de pôr à pro­va essas inda­ga­ções, uma obra de Ives Gan­dra da Sil­va Mar­tins (A era das con­tra­di­ções: Desa­fi­os da huma­ni­da­de) vem bem a calhar. O juris­ta, escri­tor e pro­fes­sor Ives Gan­dra é reco­nhe­ci­do como um dos gran­des nomes do con­ser­va­do­ris­mo bra­si­lei­ro. Tra­ta-se de um autor para­dig­má­ti­co para con­si­de­rar se a pon­te entre as gera­ções é pos­sí­vel, ou, se as dife­ren­ças são mai­o­res. Sua impor­tân­cia no pen­sa­men­to polí­ti­co não se res­trin­ge à pre­sen­ça cati­va nos prin­ci­pais deba­tes do país, mas sur­ge pelo tra­ba­lho teó­ri­co. Há diver­sos repro­du­to­res de idei­as, intér­pre­tes e inte­lec­tu­ais públi­cos, mas pro­du­to­res de teo­ria são pou­cos. Nes­te sen­ti­do o juris­ta pau­lis­ta figu­ra no time dos que foram capa­zes de elu­cu­brar pro­je­tos e estra­té­gi­as que supe­ram o tem­po de uma vida, como no caso de Vis­con­de de Cai­rú, José Boni­fá­cio, Eva­ris­to da Vei­ga, Ber­nar­do Perei­ra de Vas­con­ce­los, Joa­quim Nabu­co, Rui Bar­bo­sa, Alber­to Tor­res, Afon­so Ari­nos, Ray­mun­do Fao­ro, etc.

No caso de Ives Gan­dra, boa par­te da con­tri­bui­ção gira em tor­no do direi­to tri­bu­tá­rio. Em Teo­ria da impo­si­ção tri­bu­tá­ria (1998), o autor expli­ca como a nor­ma tri­bu­tá­ria é de rejei­ção soci­al, de modo as pes­so­as sabe­rem que o Esta­do tira da soci­e­da­de mais do que neces­si­ta­ria para pres­tar ser­vi­ços públi­cos. O gran­de mis­té­rio do dever fun­da­men­tal de pagar tri­bu­to, ou seja, de como se gera uma cons­ci­ên­cia de dívi­da para com um ente públi­co, desen­ca­deia uma per­cep­ção sobre como a soci­e­da­de enxer­ga o gover­no. Isso enca­mi­nha, de for­ma mais pro­fun­da, a per­cep­ção trans­cen­den­tal, de como o pró­prio Cris­to ensi­nou que esse cum­pri­men­to não deve­ria ser o even­to mais impor­tan­te da vida, pois o mais pre­ci­o­so está naqui­lo que é para Deus, segun­do a divi­sa: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Matheus, 22:21). E, de modo mais cor­ri­quei­ro, o assun­to inse­re o deba­te sobre o volu­me da car­ga tri­bu­tá­ria no Bra­sil, onde resi­de a mili­tân­cia de Ives Gan­dra fazen­do coro por uma refor­ma tri­bu­tá­ria e do esta­do bra­si­lei­ro, que tenha por nor­te dimi­nuir o peso des­sa obri­ga­ção e tor­nar as ins­ti­tui­ções públi­cas mais efi­ci­en­tes e justas.

Além de uma sumi­da­de no direi­to tri­bu­tá­rio, enquan­to íco­ne de uma gera­ção de juris­tas con­ser­va­do­res, Ives Gan­dra Mar­tins está entre aque­les dis­pos­tos a “pas­sar o bas­tão”. A come­çar por sua auto­pro­cla­ma­ção enquan­to Jus­na­tu­ra­lis­ta. A defe­sa do Direi­to Natu­ral é uma asso­ci­a­ção cons­tan­te do ideá­rio con­ser­va­dor moder­no. É uma ban­dei­ra que repre­sen­ta a sal­va­guar­da da noção cris­tã sobre os direi­tos, de pro­te­ção da ins­ti­tui­ção fami­li­ar, do direi­to à vida, de uma dis­tin­ção sobre a ver­da­de das coi­sas, e de uma blin­da­gem con­tra as pro­vo­ca­ções das pau­tas progressistas.

Nossos dilemas

Um aspec­to que iden­ti­fi­ca o cui­da­do de Ives Gan­dra em dei­xar um lega­do, é como apre­sen­ta ao públi­co um catá­lo­go dos dile­mas con­tem­po­râ­ne­os, endos­san­do ori­en­ta­ções sobre como enfren­ta-los. Em A era das con­tra­di­ções, o intui­to é jus­ta­men­te o de encon­trar saí­das para os pro­ble­mas, ao con­trá­rio do viés polí­ti­co à esquer­da, que vê nas con­tra­di­ções, nos dis­sí­di­os, na “luta de clas­ses”, um motor para o pro­gres­so his­tó­ri­co. Outros­sim, o que Ives Gan­dra per­ce­be é que as con­tra­di­ções come­çam pelas con­fu­sões ínti­mas que todos nós pos­suí­mos, e que se ampli­am até dile­mas inco­men­su­rá­veis. Temos nas nos­sas entra­nhas as gran­des tra­gé­di­as, mas que no ape­lo cris­tão, pela con­ser­va­ção das con­quis­tas huma­nas no cam­po da polí­ti­ca, da jus­ti­ça e da ciên­cia, é pos­sí­vel encon­trar uma coe­rên­cia per­ma­nen­te. Esse é o ide­al con­ser­va­dor do nos­so autor.

Ree­di­ta­do em 2019 pela Resis­tên­cia Cul­tu­ral – uma das mais cui­da­do­sas edi­to­ras de obras clás­si­cas e ino­va­do­ras ao res­ga­te da inte­li­gên­cia no Bra­sil – A era das con­tra­di­ções é um livro de sín­te­se do pen­sa­men­to de Ives Gan­dra Mar­tins. Rega­do pelo epí­lo­go de Ber­nar­do Cabral e pelo pos­fá­cio de Ricar­do Vélez Rodri­guez, o tex­to  prin­ci­pal foi revi­sa­do pelo pró­prio Ives Gan­dra e pela edi­to­ra de José Lorê­do Filho. Basi­ca­men­te, deli­neia esse con­jun­to de gran­des per­cal­ços con­tem­po­râ­ne­os: a tra­je­tó­ria da aven­tu­ra huma­na, o con­fli­to das ide­o­lo­gi­as, o sécu­lo XX e a tran­si­ção para os desa­fi­os do sécu­lo seguin­te, as con­tra­di­ções da polí­ti­ca, da jus­ti­ça, da eco­no­mia, dos tri­bu­tos, da mídia e, sobre­tu­do, do homem.

No capí­tu­lo sobre a polí­ti­ca o autor apre­sen­ta seis gran­des con­tra­di­ções. Demo­cra­cia x Dita­du­ra, bem-estar X ordem, polí­ti­cos x esta­dis­tas, cor­rup­ção x moral admi­nis­tra­ti­va, casuís­mos x neces­si­da­des públi­cas, e, situ­a­ção x opo­si­ção. Além do mape­a­men­to, Ives Gan­dra traz indi­ca­ções, con­se­lhos, recei­tas. Pro­põe saí­das equi­li­bra­das, sem rom­pan­tes revo­lu­ci­o­ná­ri­os, sem alar­des e sem conflitos.

É des­se modo que enxer­ga a polí­ti­ca, tal como no qua­dro atu­al. Crí­ti­co con­tu­maz da cor­rup­ção bra­si­lei­ra, sem dei­xar de denun­ci­ar exa­ge­ros, como na ação penal 470 (Men­sa­lão) – a pon­to de cho­car os direi­tis­tas por ter dito em 2013 que José Dir­ceu (PT) fora “con­de­na­do sem pro­vas”. Elo­gi­o­so da ope­ra­ção Lava-Jato, mas indis­pos­to com o ati­vis­mo judi­ci­al, inclu­si­ve defen­den­do o con­tro­ver­so pro­je­to de Lei do Abu­so de Auto­ri­da­de, que virou a Lei n. 13.869 de 2019. Con­trá­rio ao tele­vi­si­o­na­men­to do Supre­mo Tri­bu­nal Fede­ral, que esta­ria inflan­do o ego dos minis­tros, mas brin­da a casa como balu­ar­te da demo­cra­cia. Oti­mis­ta quan­to ao gover­no Bol­so­na­ro, aplau­din­do o heroís­mo da ascen­são do ex-mili­tar à Pre­si­dên­cia da Repú­bli­ca e a qua­li­da­de dos minis­tros, mas impa­ci­en­te quan­to a fal­ta de coor­de­na­ção com o Con­gres­so Naci­o­nal. Afir­ma que as teses ven­ti­la­das por Bol­so­na­ro estão cer­tas, mas que fal­ta mode­ra­ção no dis­cur­so e uma melhor arti­cu­la­ção para tor­ná-las efe­ti­vas na estru­tu­ra política.

No cabe­dal de refor­mas que o país pre­ci­sa, Ives Gan­dra acre­di­ta que mais dia menos dia será pre­ci­so uma refor­ma polí­ti­ca para apro­xi­mar o país do par­la­men­ta­ris­mo. Atu­al­men­te, diz que não é o momen­to, pois a vida par­la­men­tar só exis­te onde há fide­li­da­de par­ti­dá­ria – o que jus­ta­men­te não exis­te no Bra­sil. Ain­da assim, tem no par­la­men­ta­ris­mo um ide­al de lon­ga data, pois inclu­si­ve foi fili­a­do até 1965 ao Par­ti­do Liber­ta­dor, cujo líder fora o gaú­cho Raul Pil­la, e que teve como prin­ci­pal ban­dei­ra o sis­te­ma de gabi­ne­tes. Tra­ta-se de uma heran­ça que elo­gia a flui­dez polí­ti­ca do Segun­do Rei­na­do do Impé­rio, em que o sis­te­ma polí­ti­co con­tro­la­do pelo Poder Mode­ra­dor, sob a rege da Cons­ti­tui­ção de 1824, abri­gou um pro­gres­so de deba­tes e con­quis­tas para o Bra­sil, onde gra­da­ti­va­men­te o Impe­ra­dor ia ceden­do espa­ço à ple­na ati­vi­da­de par­la­men­tar, até que o gol­pe de 15 de novem­bro de 1889 inter­rom­peu esse processo.

Quais as lições que podemos (e devemos) aprender com Ives Gandra?

Por mais que uma liga­ção entre gera­ções do ideá­rio con­ser­va­dor seja no míni­mo inter­mi­ten­te, há diver­sas lições a serem obser­va­das. Do tra­ba­lho rea­li­za­do por Ives Gan­dra na inte­lec­tu­a­li­da­de públi­ca bra­si­lei­ra, há ele­men­tos comuns da crí­ti­ca a toda Era Var­gas, da “esta­to­la­tria”, de um cons­ti­tu­ci­o­na­lis­mo imen­sa­men­te garan­tis­ta, da fal­ta de dina­mi­za­ção econô­mi­ca. Nes­te ínte­rim Ives Gan­dra é bas­tan­te pró­xi­mo de Rober­to Cam­pos, com quem escre­veu diver­sos livros e man­te­ve uma ami­za­de. Já na for­ma de escre­ver faz par com um hábi­to do bacha­re­lis­mo bra­si­lei­ro, iden­ti­fi­ca­do com um ensaís­mo que mui­to lem­bra o de Afon­so Ari­nos de Mel­lo Franco.

Mas além des­sas carac­te­rís­ti­cas que se imis­cu­em com outros pen­sa­do­res bra­si­lei­ros de sua gera­ção, há outros ensi­na­men­tos de Ives Gan­dra que mere­cem des­ta­que, em espe­ci­al os que apa­re­cem em A era das con­tra­di­ções. Pri­mei­ra­men­te, pelo modo como enca­ra a his­tó­ria do direi­to, como patrimô­nio dei­xa­do pelos roma­nos que deve ser com­pre­en­di­do e pre­ser­va­do. Da filo­so­fia gre­ga pre­ga o reen­con­tro com os ensi­na­men­tos socrá­ti­cos, como para supe­rar o infe­liz resul­ta­do da glo­ba­li­za­ção até aqui, que ao invés do for­ta­le­ci­men­to dos for­tes pelo for­ta­le­ci­men­to dos fra­cos – como que­ria o pai da filo­so­fia, vigo­ra a incor­re­ta per­cep­ção de for­ça, expos­ta por Cáli­ces (os fra­cos com direi­to a sua fra­que­za e os for­tes à sua for­ta­le­za), como apre­sen­ta­do no dis­cur­so Gór­gi­as. Do cris­ti­a­nis­mo obser­va a máxi­ma do amor ao pró­xi­mo, e num tom de oti­mis­mo enca­ra que no mun­do moder­no há sim altruís­mo: “os volun­ta­ri­a­dos e as orga­ni­za­ções bene­fi­cen­tes mul­ti­pli­cam-se, em todos os paí­ses, numa demons­tra­ção de que par­ce­la da huma­ni­da­de sabe como ser­vir ao pró­xi­mo”[6].

A cren­ça no melho­ra­men­to da polí­ti­ca encon­tra-se com a pos­si­bi­li­da­de de bons exem­plos, den­tro da pró­pria tra­je­tó­ria bra­si­lei­ra. A refor­ma do esta­do deve fazer com que o fun­ci­o­na­lis­mo públi­co seja o melhor pres­ta­dor de ser­vi­ço, máxi­mo em hones­ti­da­de e sacri­fí­cio, tal como tive­mos na pes­soa de D. Pedro II. Para Ives Gan­dra esse res­pei­to à coi­sa públi­ca deve­ria virar lite­ral­men­te esco­la. Comen­ta que no livro O Esta­do de Direi­to e o Direi­to do Esta­do, propôs a for­ma­ção de uma Esco­la Polí­ti­ca para quem pre­ten­des­se atu­ar na vida pública.

Ain­da na cons­te­la­ção de atri­bu­tos do pen­sa­men­to con­ser­va­dor, jun­to da defe­sa do Direi­to Natu­ral, da his­tó­ria como mes­tra da vida, do oti­mis­mo sobre a con­quis­ta dos direi­tos, das liber­da­des e da aber­tu­ra da cons­ci­ên­cia huma­na, há tam­bém a pru­dên­cia polí­ti­ca. Nes­te que­si­to o pes­si­mis­mo não se lhe esca­pa, enca­ran­do de for­ma lím­pi­da a rea­li­da­de polí­ti­ca. Em Uma bre­ve teo­ria do poder – tam­bém edi­ta­do pela Resis­tên­cia Cul­tu­ral (2016) – Ives Gan­dra par­te das ten­ta­ções de San­to Antão para fazer uma his­tó­ria do poder atra­vés dos seus deten­to­res. Na aná­li­se do cará­ter prá­ti­co, exis­ten­ci­al e cons­ti­tu­ti­vo do poder, escla­re­ce como a cor­rup­ção é pra­ti­ca­men­te ine­ren­te ao poder. Com efei­to, é um olhar sch­mit­ti­a­no, de que a polí­ti­ca é fei­ta da opo­si­ção amigo-inimigo.

A matu­ri­da­de, a sere­ni­da­de e a paci­ên­cia de Ives Gan­dra tra­zem outros lam­pe­jos de luci­dez con­tra inú­me­ras inge­nui­da­des. Uma cor­res­pon­de ao ris­co de ado­tar­mos nova Cons­ti­tui­ção sem antes ter­mos esta­bi­li­da­de polí­ti­ca. Por mais que sejam gra­ves os pro­ble­mas da atu­al de 1988, não há garan­ti­as peran­te a con­fu­são atu­al, de que o resul­ta­do será melhor do que aqui­lo que já temos. Outra é a admi­ra­ção pelo Bra­sil, mais do que pelos Esta­dos Uni­dos. Esta é uma lição ao con­ser­va­do­ris­mo kits­ch, que tem no ame­ri­ca­nis­mo uma espé­cie de ido­la­tria. Con­tra isso, Ives Gan­dra expli­ca que den­tro da his­tó­ria ame­ri­ca­na há cer­tas esco­lhas mui­to menos hon­ro­sas do que pare­cem – como a ori­gem do Sena­do daque­le país, fei­to no fun­do para evi­tar a abo­li­ção da escra­vi­dão, na medi­da em que per­mi­tiu equi­li­brar o poder dos esta­dos mem­bros do sul, ante os do nor­te que eram mais popu­lo­sos. Dife­ren­te da repre­sen­ta­ção demo­grá­fi­ca dos depu­ta­dos, o Sena­do foi fei­to para dar poder a cada esta­do de for­ma equâ­ni­me. O dis­cur­so ofi­ci­al pri­vi­le­gia o ide­al da rela­ção entre os pode­res, mas na prá­ti­ca isso levou ao atra­so do fim do escra­vis­mo em qua­se 80 anos.

Defi­ni­ti­va­men­te, a men­sa­gem de Ives Gan­dra é para com­pre­en­der­mos o nos­so per­cur­so his­tó­ri­co, revi­go­ran­do os valo­res patrió­ti­cos do Bra­sil. Des­de­nhar des­sas lições é cor­rer o ris­co de cair os mes­mos erros e no ridí­cu­lo. Por­tan­to, para evi­tar esses males os livros des­se gran­de juris­ta estão aí para nos ajudar.

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NOTAS

[1] Não seria opor­tu­no colo­car Ola­vo de Car­va­lho nes­se meio por­que é de fato o mais sui gene­ris dos inte­lec­tu­ais públi­cos bra­si­lei­ros, por­que embo­ra tran­si­tas­se entre os con­ser­va­do­res das gera­ções pas­sa­das, é na ver­da­de o íco­ne da juven­tu­de que remo­de­la o qua­dro polí­ti­co naci­o­nal. Qui­çá nem se tra­ta de pon­te entre o pas­sa­do e o futu­ro, por­que é sim­ples­men­te algo novo. Embo­ra um cará­ter comum seja o de res­ga­te cul­tu­ral brasileiro.

[2] Vide o caso do pri­mei­ro minis­tro de Esta­do do gover­no de Jair Bol­so­na­ro a assu­mir o Minis­té­rio da Edu­ca­ção, o poli­tó­lo­go Ricar­do Vélez Rodri­guez, repre­sen­tan­te dos “velhos”, que foi infe­liz em sua ges­tão, a pon­to de desa­gra­dar sobre­ma­nei­ra os “novos” con­ser­va­do­res e reacionários.

[3] LOEWENSTEIN, Karl. Teo­ría de la Cons­ti­tu­ción. Trad. Alfre­do Gal­le­go Ana­bi­tar­te. Madrid: Edi­to­ri­al Ari­el, 1979 [1963].

[4] CHESTERTON, G. K.. “Os Erros de Nos­sos Par­ti­dos” (The Blun­ders of Our Par­ti­es, The Illus­tra­ted Lon­don News, 19/4/1924. Trad. Anto­nio Car­los Macha­do Jr.), em Revis­ta Per­ma­nên­cia, n. 296, Tem­po do Natal, 2019. Para adqui­rir a revis­ta, con­ta­tar: https://www.editorapermanencia.net/

[5] ORTEGA Y GASSET, José. El tema de Nues­tro Tiem­po. I – La idea de las gene­ra­ci­o­nes. 1923

[6] MARTINS, ibid., 2019, pp. 200. Em segui­da Ives Gan­dra obser­va que o gran­de desa­fio do sécu­lo XXI é ven­cer a ten­dên­cia ao egoís­mo. A ale­go­ria do cemi­té­rio rus­so é tra­zi­da como iden­ti­fi­ca­ção éti­ca a cren­ça na pre­o­cu­pa­ção de uns pelos outros. “Famo­so poe­ta rus­so che­gou um dia a uma aldeia de seu país e, visi­tan­do o cemi­té­rio, veri­fi­cou que, a jul­gar pelas datas gra­va­das nos túmu­los, todas as pes­so­as ali sepul­ta­das tinham mor­ri­do mui­to jovens. Per­gun­tou aos que o acom­pa­nha­vam se o cemi­té­rio era dedi­ca­do ape­nas à juven­tu­de e se have­ria um cemi­té­rio de velhos. A res­pos­ta o sur­pre­en­deu: o cemi­té­rio era o úni­co da aldeia, e ali esta­vam sepul­ta­dos jovens e velhos, mas seu tem­po de vida era con­si­de­ra­do a par­tir do momen­to em que tinham apren­di­do a ser­vir ao próximo”.

[7] MARTINS, ibid., 2019, pp. 121. Essa Esco­la Polí­ti­ca seria públi­ca, sus­ten­ta­da pelos gover­nos, com três graus. 1o grau – para dis­pu­tas polí­ti­cas muni­ci­pais; 2o, para dis­pu­tas polí­ti­cas esta­du­ais e uni­ver­si­tá­ri­as; 3o, para dis­pu­tas polí­ti­cas naci­o­nais. Segun­do Ives Gan­dra, nes­sas esco­las se ensi­na­ria não ape­nas his­tó­ria, ciên­cia polí­ti­ca, soci­o­lo­gia, eco­no­mia, direi­to, filo­so­fia, finan­ças públi­cas, como as expe­ri­ên­ci­as naci­o­nais e inter­na­ci­o­nais no mane­jo da res publi­ca. A cons­ta­ta­ção é a de que par­te dos comuns erros dos paí­ses emer­gen­tes é a repe­ti­ção de equí­vo­cos do pas­sa­do por des­co­nhe­ci­men­to da his­tó­ria, de modo que qua­se todos os polí­ti­cos têm a impres­são de que são “ori­gi­nais”, ao redes­co­bri­rem o “óbvio”, por­que se negam a levar em con­ta as suas obri­ga­ções. Essas esco­las deve­ri­am ser requi­si­tos à ati­vi­da­de polí­ti­ca, como cri­vo para os gover­nan­tes e legisladores.